Isso deveria ser sobre preços, mas é sobre enchente
Tradição nos Estados Unidos, onde a sexta-feira após a Ação
de Graças é um dia de comprar coisas pela metade (ou menos) do que o preço, a
tal Black-Friday desembarcou aqui no Brasil e as pessoas loucas deste país vão
todas tentar comprar alguma coisa pela metade do dobro do preço. Isso porque
temos várias diferenças dos nossos amigos da parte norte do continente
americano. Uma delas é a quantidade absurda de impostos sobre cada produto, o
que torna a prática quase inviável. A outra, que leva ao motivo deste artigo, é
que não temos Ação de Graças, até porque ainda não sei se temos motivos para
dar graças.
Já estou ouvindo daqui os gritos de: “COMO ASSIM”? Ok! Estamos
vivos e respirando, e o que mais? Estamos pagando impostos absurdos até sobre a
nossa comida e remédios. Pagamos muito caro pelo direito de ir e vir. Os
impostos e taxas que pagamos deveriam retornar a nós em forma de escolas
públicas decentes; hospitais, e atendimento médico universal, saneamento, ruas
e estradas seguras para circulação, policiamento decente e, especialmente
inclusão.
Cada dia eu vejo menos gente trabalhando nas empresas, nos
bancos, nas lojas, nos serviços públicos, enfim: cada vez menos gente ganhando
salários que fazem a economia girar. Me pergunto aonde estamos indo?
Piraporinha às 18 horas |
Estou fazendo essa volta toda para falar (e mostrar) algumas
imagens da sexta-feira negra aqui no Grande ABC, que não é “maior” em nada e
que continua passando as mesmas coisas de sempre.
Vamos começar as explicações: somos sete cidades, cercadas
de rios e serra por todos os lados. Já tivemos uma indústria que trouxe
desenvolvimento para o estado como um todo, mas, com o passar do tempo, ao
invés de usarmos esse desenvolvimento para construir uma região melhor para
todos, resolvemos que tínhamos que excluir pessoas para que uns pudessem se dar
bem enquanto outros se danavam.
E essa é a coisa que continuamos fazendo. Nem percebemos que
nós mesmos estamos sendo excluídos e que, num futuro bem próximo, podemos não
ter como morar, comer, viver.
Ontem, mais uma vez, uma chuva que mais parecia um tornado
veio para cima de nós. O meu bairro, que já não tinha enchentes há uns dois
anos, ficou debaixo d’água. Não teve piscinão que desse jeito. Mas, comparado a
outros lugares, foi suave.
Piraporinha ficou intransitável entre as 17 horas e as 23
horas, quando o caos começou a voltar a uma pseudonormalidade. Mas não posso dizer o mesmo do centro de São
Bernardo, que passa há anos por intervenções que deveriam tornar aquele espaço
um “centro seco”. Nessas horas gostaria
de dizer que todos estão fazendo o melhor que podem, mas não. Porque é mais
fácil dizer em grandes outdoors (muito caros) que as obras foram retomadas,
como se isso fosse um grande favor, do que gastar dinheiro para acelerar as
obras e terminar esse inferno logo.
Em Santo André, não sei como ficou o centro, mas vi um vídeo
do cemitério de Vila Pires, que desbarrancou, com rompimento de muros de
taludes, e caixões sendo despejados pelo aguaceiro. Imagens dignas de filmes de
horror, mas nada novo em se tratando do Grande ABC em particular ou do Brasil
em larga escala.
Cemitério de Vila Pires |
Somos um país totalmente carente de infraestrutura e ainda
tem alguns governantes engraçadinhos que não apenas não investem em novas
obras, como não fazem sequer a manutenção básica no que já existe.
Há pouco mais de uma semana, uma ponte em São Paulo
literalmente solapou. Por sorte (???) isso aconteceu num horário de pouco
movimento e não houve vítimas. Eu poderia culpar o poder público apenas por
falta de manutenção, mas a coisa fica melhor (???) quando se descobre que as
plantas originais da ponte não existem mais. E as explicações são lindas, indo
desde “os originais estavam na casa do engenheiro que pegou fogo”, e “o estado
não tem cópias em seu acervo”.
E assim, dando uns poucos exemplos, mostro o desgoverno com
que estamos sendo tratados há pelo menos uns 100 anos. Todo mundo acredita que
um país desenvolvido se mostra por suas ruas limpas, seus prédios bem cuidados,
suas estradas e ruas limpas e transitáveis. E sim, isso é verdade, mas não é a
única verdade. Porque todas essas coisas só existem quando o povo que habita
esse país não foi jogado na lixeira enquanto construía os privilégios de uns
poucos.
Região Central de São Bernardo do Campo |
As pessoas adoram mostrar as histórias de homens que “venceram”
com seu próprio esforço, mas o que tenho visto nos meus 57 anos de vida é um
monte de gente que ajudou esses homens a vencerem e que nunca forma
reconhecidos. Esses homens podem estar, hoje mesmo, sem ter onde dormir porque
suas casas foram destruídas e seus direitos aniquilados.
Como vocês podem ver, a sexta-feira foi má, mas não vejo
algo muito bom pela frente, a não ser que todos nós mudemos de atitude.
Precisamos exigir e ajudar a construir um país desenvolvido não só para uns
poucos privilegiados, mas para todos nós, porque no momento em que esquecemos o
outro, esquecemos qualquer humanidade.
Se mudarmos de verdade, talvez possamos ter uma ação de
graças e aí sim, uma Black-Friday.
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